Muito se tem falado e discutido por esse mundo afora sobre o desenvolvimento emocional e cognitivo das crianças, eu própria estou muito ligada ao estudo desses aspetos devido ao meu curso. Mas como diz aquela célebre frase cliché "uma coisa é a teoria, a prática são outros 500", porque além de psicóloga eu também sou mãe.
A psicologia ensina-me que não é viável nem sadio pegarmos na nossa experiência pessoal enquanto filhos e projeta-la nos nossos filhos como forma de "curarmos" as nossas mágoas e os nossos traumas. A minha consciência sempre me acautelou para evitar fazê-lo, mas eis que a minha experiência veio-me mostrar onde fica o meio.
Ontem à noite, enquanto ajudava o Gabriel a criar uma história/composição para a escola, eis que de repente o pai interpela-nos e comenta sobre uns rabiscos que o meu filho tinha feito numas folhas do caderno, uns corações com o nome dele e de uma miúda da turma dele. O pai perguntou, em tom de troça, se o filho já me tinha mostrado o que tinha rabiscado nas folhas, ao que o miúdo reagiu com um riso nervoso e disse ao pai "está calado!". O pai, insistindo, pegou no caderno dele para me vir mostrar os tais rabiscos, e o meu filho agarrou nas folhas e começou a amassa-las para me impedir de as ver. E criou-se ali um conflito, o pai a tentar evitar que o miúdo rasgasse as folhas porque tinham trabalhos das aulas, eu a tentar evitar o mesmo e ao mesmo tempo que o meu filho se acalmasse, de repente o miúdo levanta-se a chorar e com uma agressividade que lhe desconheço, e foi trancar-se no quarto dele.
Fiquei chocada. Naquele momento só me passou uma coisa pela cabeça, a de que tinha magoado o meu filho.
Levantei-me e fui ter com ele ao quarto. Tentei abrir a porta mas ele fazia força para mantê-la fechada, e quando forcei abri-la ele desatou aos gritos, super vermelho tal não era a raiva que estava a sentir. Tentei falar-lhe num tom de voz calmo, mas nada adiantava, o meu filho estava completamente descontrolado com a raiva que estava a sentir naquele momento.
Ele acabou por ceder e atirou-se para cima da cama dele a chorar, desesperadamente, e eu continuava a não conseguir chegar até ele. Até que me sentei na cama ao lado dele e abracei-o, esfregando-lhe as costas para ele se acalmar, sendo que as únicas palavras que me saiam da boca eram simplesmente "está tudo bem filho, tem calma".
Depois de ele conseguir acalmar-se e respirar fundo, eu perguntei:
- Podemos conversar? - e ele acenou a cabeça dizendo que não - Mas podes-me só ouvir? - ele acenou que sim.
- Desculpa se te magoei ou chateei. Se tu não queres que eu veja o que rabiscaste nas folhas eu não vejo. Mas só quero que saibas que não há mal nenhum no que tu fizeste, que é normal, eu na tua idade também gostei de um menino da minha turma e estava sempre a desenhar corações e flores e borboletas nas minhas folhas, ainda hoje o faço! A mãe sempre que dizia que não queria cá namoricos ou raparigas, a mãe estava simplesmente a brincar e a meter-se contigo, eu jamais impedirei que tu gostes de alguém, tu és livre filho, tu e o teu irmão. Eu gosto muito de vocês, só quero que vocês estejam bem. Não sintas vergonha ou medo de me contar ou mostrar o que quer que seja, eu estou aqui sempre para ti! Desculpas-me? - acenou que sim e eu abracei-o.
Foi ali, naquele exato momento, que eu curei um pedacinho da mágoa da menina que um dia eu fui. Foi ali, naquele preciso momento, que eu tive à minha frente o poder de escolha: se fazia da mesma forma que a minha mãe um dia me fez ou se fazia diferente.
Eu vi nas lágrimas do meu filho as minhas, a raiva que ele teve a liberdade de expor pra fora era a mesma raiva que eu fui tantas vezes obrigada a engolir com o risco de apanhar se não o fizesse, vi a mesma frustração de não entender o que se sente, a mesma vergonha, o mesmo medo. A diferença é que fui capaz de conter as emoções do meu filho, assumir o meu erro ao ter tentado invadir a privacidade dele movida pela minha curiosidade, ao invés de dizer aquilo que um dia ouvi "ainda mijas nas cuecas, não quero cá galderices", como se uma criança de 8 anos fosse desprovida de qualquer sentimento ou vontade mas que ainda assim fosse capaz de ser uma galdéria...
Há pouco tempo, numa conferência na minha faculdade em que o [enorme senhor!] Marcos Piangers falava sobre ser pai, ele disse que cada vez que abraçava as filhas e elas adormeciam abraçadas a ele, ele sentia que estava a abraçar o menino sem pai que um dia ele foi, que ao dar colo e abraços às filhas também dava colo ao menino carente que ele tinha sido. Ele dizia mesmo que é possível sim curar algumas das nossas mágoas enquanto filhos ao sermos pais e mães diferentes daqueles que tivemos. Na altura não quis acreditar muito nisso, afinal a psicologia ensina-me todos os dias o contrário. Mas a psicologia não explica tudo na vida e nem sempre devemos olhar para as coisas com a medida do 8 e do 80.
A minha mãe magoou-me muito enquanto filha, mas isso não quer dizer que eu tenha que ser igual a ela e seguir-lhe as pisadas. Por eu saber exatamente as dores profundas e permanentes que ela me causou, isso ainda me dá mais obrigação de fazer diferente enquanto mãe e não causar as mesmas dores nos meus filhos.
Há erros na vida que de tanto vermos os outros cometer, podemos escolher não os repetir, e isso dependerá sempre da nossa capacidade de nos lembrarmos de quem fomos um dia, do que nos fizeram e do que sentimos na altura. E só isso basta para fazer de nós melhores mães [e pais].
A maior qualidade de uma mãe [e de um pai] é ter a consciência de que se é imperfeito e que por isso mesmo também erramos, e pedir desculpa aos filhos é assumir perante eles não só essa noção [válida] de humanidade imperfeita mas também ter a coragem de assumir que se ultrapassou um limite que eles também os têm.
Ontem, pedir desculpa ao meu filho mostrou-me não só o quanto sou [humanamente] imperfeita, mas também me deu a certeza de que a coragem de o fazer, fez de mim uma mãe melhor.
Gosto sempre tanto de ler os teus desabafos. Adorei a tua atitude com o pequeno e a forma como resolveste uma situação. Confesso que nunca veria isso como invasão de privacidade ao pequeno e é por isso que gosto tanto de 'aprender' contigo. Acho que já te disse uma vez que acho que és uma mãe maravilhosa e quando o digo é que coração mesmo. Gosto tanto do teu cantinho <3
ResponderEliminarTHE PINK ELEPHANT SHOE
Ohhhh agora deixaste-me sem palavras!! Fico muito feliz, genuinamente feliz, por saber que as minhas palavras tocam alguém desse lado. Fico feliz quando entendem a minha mensagem e vêem algo de útil nela.
ResponderEliminarObrigada pelo teu carinho, és das poucas que ainda "perde" algum do seu tempo em ler-me. Obrigada por estares sempre aí!
Beijinho grande
Mais uma vez adorei lê-la. E mais uma vez saio daqui com a ideia de que a menina é uma grande mulher. Quem dera todas as mães agissem assim.
ResponderEliminarAbraço
É excelente essa sensibilidade, gostei muito do post! A humanidade imperfeita seria muito mais perfeita se todos fossem sensíveis ao ambiente, aos outros, se todos tivessem capacidade de compreensão, respeito e amor.
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