O mundo endoideceu

Queridos filhos,

Desculpem-me, mas eu enganei-me na porta de saída. Não era para este mundo que vos queria ter trazido, um mundo completamente virado do avesso, um mundo cada vez mais agressivo, mais de doidos. Não, não era este o sítio onde eu queria que vocês morassem, desculpem.
Quando vos gerei no meu ventre e depois vos ajudei a nascer, julguei que estaria a plantar mais amor no mundo, afinal, as crianças são o que de melhor existe nele.
Que ingenuidade a minha... Agora até o melhor do mundo se mata de ânimo leve, seja em atentados ou seja por um pai ou uma mãe enciumados, como forma de retaliação.
Neste mundo já não se senta para conversar, já não se separam águas, já não se medem consequências, as pessoas vivem com medo, assustadas, nunca se sabe em que teatro ou aeroporto vão morrer, quando saem de casa já não têm nenhuma percentagem de certeza se voltam.
Neste mundo a esperança vai sendo substituída pela imposição do medo e a dependência de governos que ao invés de protegerem-nos, arrastam-nos para o meio dos seus jogos de força, como se a vida fosse um jogo de xadrez e nós, os mais frágeis, fossemos meros peões.
Este mundo está um sítio perigoso, cada vez mais inabitável para inocentes como vocês, meus filhos. E lamento tanto!
Todos nos dizem para não termos medo, a porra é que não tenho! Como é que se pede a uma mãe para não ter medo, quando a função dela é zelar pela vida e segurança dos seus filhos e já nem isso ela é capaz de assegurar a 100%? Como é que se pede a uma mãe para não ter medo de cada vez que apanha o metro para ir levar os miúdos à escola ou um avião para ir de férias?
"Não podemos deixar que os terroristas atinjam o seu objetivo", sim, mas não me peçam para não ter medo quando não vejo nada nem ninguém a unir forças para combater estes doentes mentais que tão pouco amor têm à vida para se fazerem explodir, como se fossem fogo de artifício! A porra é que não tenho medo!
O medo é um sentimento terrível, é paralisante, e é através do medo que se travam e vencem grandes batalhas. Mas o medo é inevitável quando se olha para o estado em que o mundo está. A ideia de que "é lá longe, não nos toca a nós" é um engano. Tudo nos toca, basta se tratar de seres humanos como nós e percebermos que tudo nos bate à porta um dia.
Não deixo de pensar no esforço diário que eu e muitas outras mães fazem para educar os seus filhos o melhor possível, ensinar-lhes os valores primordiais do amor e o respeito pela vida e pelas crenças do outro, da tolerância, do saber esperar, do não retribuir com a velha máxima "olho por olho, dente por dente", e não deixo de pensar que esse esforço quase parece ser em vão, ao vermos as notícias na televisão e nos jornais sobre as coisas sórdidas que vão acontecendo por esse mundo afora, onde os mesmos valores que ensinamos aos nossos filhos são completamente violados, os limites completamente ultrapassados - se bem que agora penso que não hajam nenhuns - os direitos todos deturpados. Mas o que raio se passa no mundo, senhores??
Isto é cansativo, é desgastante, é desanimador.
Meus queridos filhos, eu não sei quanto tempo vou durar, não sei o dia de amanhã, não sei se vou ter a felicidade e o privilégio de vos ver a crescer e a tornarem-se homens decentes, mas se num amanhã qualquer eu desaparecer quero que me desculpem por vos ter posto num mundo que tem mais de mau do que de bom, num país onde conquistámos a liberdade mas que o mundo insiste em rouba-la de mansinho, como se fossemos totós e não déssemos por nada, num mundo que gira sobre um tabuleiro de xadrez e fazem de nós peões a proteger os reis e as rainhas que sentam o cú nos governos a assistirem na primeira fila uma espécie de "Hunger Games", onde todos os dias nos roubam a esperança e, no limite, a vontade de viver.
Só vos peço uma única coisa, uma pequenina: não deixem que vos roubem a dignidade. A esperança é uma semente plantada no coração, e faço questão de regar a vossa todos os dias da vossa vida, por isso, peço-vos que a deixem germinar e florir. Eu sei que sozinho não se consegue mudar o mundo, mas há sempre o começo, e eu peço-vos que sejam parte desse começo, peço-vos que espalhem amor pelo mundo, o mesmo com que vos gerei e vos ajudei a nascer. Porque eu acredito que a solução dos problemas do mundo passam, grande parte, pelo amor que hoje muito lhe falta.
Por isso, conto convosco, o mundo conta convosco.