|| Março

O mês de Março sempre representou para mim um mês agridoce. Sei lá, começa a Primavera, os dias ficam maiores, o Sol acaba por reinar mais vezes, mas sempre fui mais menina dos dias frios e chuvosos e menos dos dias ensolarados e quentes, talvez tenha sido sempre um reflexo de dentro pra fora... Desde que me lembro, quando começa a transição dos dias frios para os dias mais quentes, dos dias cinzentos para os dias brilhosos, entro sempre em depressão. É como se tanto brilho me entrasse pelos olhos a dentro e me assustasse a alma, sei lá.
Sempre foi assim, portanto, o mês de Março, a menos que mude muita coisa (tal como muita coisa mudou desde o ano passado para cá), não augura nada de bom.
Março não começou bem. Eu bem disse que este mês nunca me trouxe nada de bom...
Quem por cá passa, sabe que me apareceu um problema um tanto ou quanto grave no ouvido direito, e que ontem eu tinha uma consulta com um 2º especialista em Coimbra. Pois bem, fui, com toda a fé e toda a esperança, fui com um sorriso no rosto e com o medo guardado no bolso.
Mas ao regressar a Lisboa, o sorriso já tinha voado e vesti o medo que trazia no bolso.
Para começar, deparei-me com um sapateiro que a única coisa que me mostrou foi que eu consigo perceber mais de medicina do que ele. A coisa começou bastante mal com o tempo que lá estive à espera, sala cheia pensei "bem, o gajo é mesmo bom, só pode!", mas assim que bati com os olhos nele a minha vontade foi bater a porta, qual intuição maravilhosa esta que tenho.
Sentamo-nos, eu expliquei-lhe o motivo de estar ali, levei a TAC que já tinha feito e dei-lha para a mão, meteu-a de lado. Pediu-me para me observar os dois ouvidos, observou. Perguntou-me se eu tinha tido muitas otites na infância, oh senhor, bota muitas nisso, "é que tem o ouvido esquerdo cheio de sequelas de otites e no ouvido direito tem uma perfuração no tímpano".
De seguida, mandou-me esperar pela técnica de audiograma, que precisava de fazer um para saber a perda auditiva que já tenho. Ok, esperei pela senhora, para aí uma meia hora.
Fiz o audiograma cheio de berlicoques, no fim ela diz-me "caramba, isto não pode continuar assim! Você está a ouvir já no limite, está quase surda", obrigada querida, mas não é novidade para mim. Mandou-me esperar novamente que o médico chamasse de novo, mais um tempo interminável à espera...
O homem lá me chama, e no auge da sua insegurança tremeliqueira, diz-me que estou quase surda, que o objetivo agora é secar o ouvido direito visto que ele está sempre a purgar, fazer um antibiótico que o outro médico já me tinha mandado fazer 2 vezes e não resultou, e dali a 8 dias ligar-lhe a dizer como está o ouvido, como se eu por mágica soubesse ver pra dentro e analisar se haveria melhoras no dito cujo, e depois teria que voltar ao consultório para testar um implante para conseguir ouvir melhor.

- Doutor, mas e a TAC?
- Ah sim (e folheou como se folheasse uma revista numa sala de espera), isto é uma otite média crónica, agora temos que secar o ouvido e depois pô-la a ouvir melhor.
- Doutor, mas isso diz mais qualquer coisa. Além disso, eu já fiz esse antibiótico que me está a receitar e nada resultou, inclusive até o ácido bórico já fiz e nada.
- Pois, isso pode ser um colesteatoma. Mas faça isto e se tiver alguma dúvida depois ligue-me.

Não disse mais nada. Saí, chimpei 73€ que vou chora-los até ao fim dos meus dias, bati a porta e mandei-o pó caralho. A começar pelo desprezo em relação à TAC, estava lá tudo o que ele precisava de saber. Eu até poderia ter feito o audiograma na mesma, mas o relatório dizia tudo. Mas ele preferiu não ler.
O relatório é bem explícito, até para uma gaja leiga como eu, "otite média crónica com colesteatoma associado em estado avançado, com erosão do tegmen (e outros ossículos que não me lembro o nome)". Mas o homem tá a brincar comigo ou quê?!
Eu, neste exato momento, estou-me a cagar se fico surda ou se fico com a cara do lado direito paralisada, who cares! Só quero tirar este tumor de dentro do ouvido, ficar minimamente bem para continuar a viver e poder criar os meus filhos. Mais do que por mim, é por eles que eu quero viver, porque eu sei que sem mim eles vão crescer de uma forma completamente atabalhoada, sem regras, sem valores, sem colo, sem nada.
Portanto, qual é o próximo passo? É ir à consulta dia 8 deste mês, falar com a médica de família, que é outra sapateira, portanto (sou uma mulher muito sortuda no que respeita a médicos, não haja dúvida), e pedir que me encaminhe para uma consulta no hospital. E é aqui que vou ter de fazer um choradinho, vou ter que inventar que vou passar uns tempos a Coimbra e tentar que ela me encaminhe para o hospital da Universidade, visto que tenho muito boas referências da equipa de lá, é que no Hospital São José só me apanham mesmo morta.
Neste momento, estou às escuras, e tenho pena de não ser rica e poder pagar 4000€ para fazer uma porcaria de uma cirurgia e acabar de uma vez por todas com esta agonia.
À minha volta vejo toda a gente tensa, os meus pais, prima, tias, tudo preocupado, a temer que eu entre num poço sem fundo e me deixe lá estar até pirar de vez. Ainda hoje o meu pai me ligou, com aquela voz de aflito que ele bem tenta disfarçar, à procura de um choro, de um desespero meu, mas eu sempre firme "sim, estou bem". Não estou, eu sei que não estou. Mas o choque de tudo isto que está a acontecer, tão brusco, tão rápido, deixa-me paralisada. Eu sou assim, as coisas demoram a bater-me, porque o choque mantém-me à tona, paralisada, mas à tona. Talvez seja bom, não sei. Só sei que quando o choque se dissipar, o sentimento vai ser mais forte, e aí o medo e a agonia vão tomar proporções muito feias, mais do que neste momento possa parecer.
Por agora vou fazendo dos meus dias normais, respirando fundo, mantendo tudo tranquilo, tudo favorável, como diz o outro. Vou-me aninhando no sorriso do meu filho mais novo, vou-me dando colo nas peripécias engraçadas do mais velho, apoiando-me no facto de eles estarem bem, vivos, cheios de saúde.
Vida e saúde, aí estão duas coisas a que se deve brindar todos os dias. Prometo nunca mais me esquecer disto.